quarta-feira, janeiro 24, 2007

Natal - Chama de Prata


- Mina, você se importaria de ficar quieta por um instante?

Ela revirou os olhos, mas nada disse. Em vez disso, voltou-se para o relógio que sempre levava no bolso. Faltavam poucos minutos para a meia-noite.

Tinham deixado os cavalos para trás, amarrados junto a uma das cachoeiras que abundavam nas ilhas escarpadas. Lusmore seguia por trilhas que Mina não conseguia ver, mas que sabia existirem. De quando em quando, ela pensava ter visualizado um marco qualquer, mas eram impressões muito tênues. Sabia que ainda levaria um bom tempo até que tivesse os sentidos aguçados o suficiente para ler aquelas trilhas, mas isso não significava que não pudesse ir tentando.

Finalmente, pararam junto a uma clareira. Lusmore ajoelhou-se, em absoluto silêncio, afastando alguns arbustos, de modo a permitir que vissem alguma coisa.

- Dê a volta em silêncio. - ele murmurou para ela, apontando para a esquerda.

Esse era o terceiro covil que visitavam. Os dragões, em geral, não passavam ainda de filhotes. Muito cedo, deixavam seus ninhos e tratavam de conseguir levar a vida por si mesmos. Animais extremamente individualistas, os dragões - foi o que Mina pensou, enquanto obedecia as ordens de Lusmore.

Tudo o que tinham que fazer é visitar aqueles locais em que os jovens estavam entretidos e mapear seus territórios. Isso fornecia pistas dos lugares em que poderiam haver duelos entre os dragões, quando mais velhos - quanto mais próximos estivessem os territórios, mais fácil disso ocorrer - e ajudava a evitar problemas.

As botas de couro chapinharam de leve na neve recém derretida, enquanto ela parava junto ao ponto que Lusmore lhe indicara. Ergueu os olhos, ajeitando os óculos, que tinham escorregado para a ponta do nariz. À meia luz da lua, era possível ver o grande vulto deitado, os espinhos dorsais recortados contra as pedras das montanhas ao redor.

Mina quase podia sentir a respiração do dragão.

Foi nesse momento que ela percebeu que era observada. Não fora silenciosa o suficiente. Ou talvez, estivesse a favor do vento e não percebera. Ela mordeu os lábios de leve, pouco antes de suas pupilas encontraram-se com as do animal. Mina sentiu a boca secar, enquanto seus olhos ardiam com lágrimas não derramadas.

Fogo... Gritos... O ruflar de asas negras...

Os olhos daquele dragão eram de um púrpura iridescente. Entretanto, ainda havia raias de prata em sua pupila, o que atestava que o animal não saíra completamente da puberdade.

Chama de Prata.

Ele ergueu-se suavemente sobre as patas traseiras, sem desviar dela nem por um instante. Mina viu-se refletida naqueles olhos enormes, completamente paralisada. Seu coração batia descompassado e, aos poucos, o ar frio que sempre imperava nas montanhas e vales das Hébridas tornou-se cálido, enquanto o dragão descerrava as mandíbulas.

Uma voz melodiosa gritou alguma coisa, numa língua que ela conhecia, embora naquele instante, não fosse capaz de reconhecer. No fundo da garganta aberta do animal, uma bola de fogo crescia. Ela sentiu subitamente um peso estranho sobre o corpo, jogando-a no chão. Meio segundo depois, labaredas irromperam sobre o lgar onde ela estivera, espalhando-se até as árvores, que rapidamente começaram a arder e crepitar, chorando por seu fim.

- Mina!

Ela virou-se, encarando a face de Lusmore muito próxima. Em seguida, seus olhos se voltaram para Chama de Prata. O dragão abaixou a cabeça, emitindo um longo e estreidente grito antes de abrir as asas, planando novamente rumo à escuridão.

Na clareira em chamas, Lusmore se levantou, forçando-a a fazer o mesmo para, em seguida, começar a correr, afastando-se do incêndio que começava a crescer.

Tão logo viram-se em um lugar seguro, ele voltou-se para ela, empurrando-a violentamente, fazendo com que ela batesse contra o tronco de uma árvore.

- Você está louca? Estava querendo morrer? Nós viemos apenas para observar, não para enfrentar dragões! Da próxima vez, vou deixar que você vire churrasquinho de MacFusty e depois te levo num espeto para o seu avô.

Ele podia esperar por uma resposta. Estava pronto até mesmo para receber alguns tapas e chutes. Entretanto, nada podia prepará-lo para o que veio a seguir.

Mina abaixou a cabeça, cerrando firmemente os pulsos. Um soluço escapou de sua garganta antes que grossas e brilhantes lágrimas começassem afinal a correr pelo rosto da menina. Lusmore observou-a, surpreso. Nunca vira Mina chorar, mesmo quando a provocava deliberadamente pra tanto.

Ela fora uma criança reservada e tímida, embora tivesse alguns rompantes de carinho, especialmente com Godfrey McKinnon. Quando ele a provocava, ela costumava sair de seu mutismo, assaltando-o com respostas que, de primeira, sempre o deixavam sem reação. E, se ele realmente conseguisse irritá-la, era quase certo passarem o restante do dia correndo, ela logo atrás dele, disposta a utilizar todas as técnicas existentes para infligir a maior quantidade de dor possível a ele.

Mas ela nunca fraquejara na frente dele. Ligeiramente hesitante, ele se aproximou dela. Alguma coisa acontecera para que Mina mudasse. E ele precisava saber o que fora. Com cuidado, ele voltou a puxá-la pelos pulsos, abraçando-a. Imediatamente, ela escondeu o rosto em seu peito. Lusmore respirou fundo, colocando uma mão na nuca dela.

Em seu pulso, uma pulseira de couro aparentemente comum começou a brilhar com uma luz dourada. O mesmo símbolo que adornava a pulseira caía do colo de Mina, o presente que Holly dera a ela em seu aniversário. Um triskelion.

- Anam amhrán, ceobhrán cuhma... Marana, rioghain... Marana...*

Mina arregalou os olhos, ouvindo as palavras da antiga canção, antes de sentir o corpo relaxar e deslizar, mansamente, rumo à inconsciência. Lusmore segurou o corpo inerte dela, enquanto as cenas que persistiam na memória de Mina até instantes atrás passavam céleres por suas pupilas, como se ele houvesse estado com ela durante todo o desenrolar dos acontecimentos.

Ele apoiou-se por alguns instantes contra o tronco de uma árvore, tentando acostumar-se com o volume de informações que, de repente, incorporara-se às suas memórias.

O bardo das lembranças... Era como ele ficara conhecido entre os outros druidas. Não gostava muito de usar aquele dom, embora fosse sua melhor magia. Ela era cansativa e, em termos estritamente éticos, um invasão completa à privacidade do atingido por ela.

Mas aquele caso era uma urgência.

Quando voltou a conseguir se firmar nas pernas, ele puxou o corpo de Mina para junto de si. Ela estava quente...

- Febre... Que maravilha... - ele resmungou para si mesmo, começando a andar.

Tinha que pegar os cavalos e, depois... Seria uma longa caminhada até o solar.


Nota:
*Canção da alma, névoa da saudade... Contempla, rainha... Contempla...

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